Testes de QI: como funciona a avaliação da inteligência

Prontos para mais um post de estudos? Desta vez, sobre inteligência e como medimos essa variável na clínica.

Um pouquinho de história

Os famosos testes de QI (Quociente de Inteligência) foram um dos primeiros testes psicológicos a serem desenvolvidos. São fundamentais na neuropsicologia e na psicologia e a história desse tipo de teste é um tanto inusitada.

Tudo começou na Inglaterra, com o estatístico Francis Galton (1822-1911), que buscava uma forma de medir a inteligência humana. Para isso, ele utilizou dados como a medida da cabeça, força muscular e outras características físicas. Após analisar todos os dados coletados, Galton percebeu que, diferente de suas hipóteses, não havia correlação estatística entre inteligência e características físicas ou de força.

Mais tarde, Alfred Binet (1857-1911) criou uma série de atividades para medir a “idade mental” de crianças em idade escolar. A ideia de Binet, era rastrear crianças com inteligência muito superior, para que fossem acompanhadas e estimuladas, e também crianças com dificuldades cognitivas. Com isso, foi possível dividir as classes de acordo com o nível de inteligência das crianças.

Com a Primeira Guerra Mundial, o exército americano passou a utilizar uma versão adulta dos testes de QI. Com isso, era possível que os soldados recebessem tarefas de acordo com suas habilidades, melhorando o desempenho e assertividade.

Mas se esses testes são tão antigos, ainda faz sentido utilizá-los na clínica hoje em dia?

Sim. Porque os testes de QI que se utilizam hoje não são os mesmos do início do século passado.

Os testes passam por atualizações e revisões constantes. Tanto as atividades incluídas nos testes são atualizadas, como também os cálculos (assim, um desempenho considerado médio em versões anteriores, pode não estar mais na média na versão atual).

Essas atualizações são fundamentais! Afinal, nossos pacientes não são os alunos de Binet, nem os soldados da Primeira Guerra. Os testes e tabelas precisam acompanhar as mudanças, precisam ser um reflexo o mais próximo possível da nossa população.

Por isso, além de atualizações periódicas, os testes geralmente precisam ser adaptados e validados para a população de cada país. Isso faz com que esses testes se tornem cada vez mais precisos e confiáveis.

Fator g e Fator s

Conforme os testes de inteligência se desenvolviam, o psicólogo inglês Charles Spearman (1863-1945) calculou a primeira análise fatorial de correlações entre diferentes testes. Ou seja, Spearman procurou padronizar os resultados desses testes, observando, por exemplo, se uma criança que obteve resultado médio em um teste, obteria resultados parecidos em outros testes. Com os resultados dos cálculos de Spearman, foi possível verificar se todos os testes de inteligência mensuravam o mesmo tipo de variáveis e o quanto os resultados eram coerentes com o nível intelectual do paciente.

Com isso, estabeleceu o que chamamos fator g e fator s. O fator g é um tipo de inteligência geral – nos testes, os itens que avaliam o fator g sempre são aqueles que apresentam correlação mais alta com os demais itens, num cálculo estatístico. Já fator s faz referência a habilidades mais específicas, de correlação mais baixa entre os itens do teste.

Esses conceitos de fator g e s é aceito até os dias de hoje e também são mencionados nos testes atuais.

Inteligências múltiplas?

Na década de 1980, os testes de inteligência foram muito questionados. Afinal, faz sentido querer mensurar estatisticamente o nível de inteligência de alguém? E o que é inteligência, afinal? Será que apenas boas notas e bom desempenho escolar é o suficiente para dizer que alguém é inteligente? Será que uma criança com dificuldades escolares tem menos inteligência?

Com esses questionamentos em mente, o psicólogo americano Howard Gardner (1943) formulou o conceito de inteligências múltiplas. Segundo Gardner, existem diferentes tipos de inteligência, e se alguém é muito habilidoso ou muito pouco habilidoso em alguma delas, isso não significa que terá o mesmo desempenho nas outras – aquela velha história de alguém que pode ser muito bom em matemática, porém ter dificuldade em linguagem, sabe?

Gardner estabeleceu sete tipos de inteligência e, mais tarde, outros dois tipos foram acrescentados:

  • Inteligência linguística: habilidade com palavras, literatura, idiomas, escrita…
  • Inteligência musical: capacidade para compreender, diferenciar e compor padrões musicais, ritmo e timbre
  • Inteligência lógico-matemática: raciocínio lógico, habilidade com números, capacidade de dedução e de categorizar informações
  • Inteligência visual-espacial: capacidade para compreender, criar ou transformar estímulos visuais e do espaço (ambiente). Isso inclui percepção precisa de padrões, noção espacial, simetrias…
  • Inteligência corporal/cinestésica: domínio dos movimentos corporais, com precisão de movimentos, ritmo e fluidez
  • Inteligência interpessoal: habilidade para lidar com pessoas. Empatia, percepção e compreensão dos sentimentos, motivações e jeitos de pensar das outras pessoas ou grupos
  • Inteligência intrapessoal: capacidade de autoconhecimento e de perceber a si mesmo. Compreensão dos próprios limites, inquietações, motivações e sentimentos, gerenciamento do estresse e das emoções.
  • Inteligência naturalista*: habilidade de reconhecer e lidar com o mundo natural e seus fenômenos, como plantas, animais, rochas e o meio ambiente
  • Inteligência existencial*: capacidade de refletir sobre questões profundas da existência

*Os dois últimos itens foram acrescentados mais tarde.

A teoria das inteligências múltiplas não é um consenso na comunidade científica. Embora aceita por muitos, recebe críticas, em especial, pelo fato de não ser empiricamente verificável. No entanto, trazem uma ideia importante: a noção que temos sobre o que é inteligência é algo que pode ser diferente em épocas e estilos de vida/culturas diferentes. Por isso, a maneira de avaliar a inteligência pode mudar conforme o conceito de inteligência do qual se está partindo.

O conceito que temos sobre inteligência não é único

Da mesma forma como Galton pensava em medir a inteligência através de características físicas (o que, sabemos hoje, não faz sentido), os diferentes conceitos de inteligência podem levar a formas diferentes de mensurar esta variável.

Hoje em dia o conceito mais bem aceito é o da APA (Associação Americana de Psicologia): inteligência é tudo aquilo que se refere às nossas capacidades cognitivas, ou seja, nossa capacidade de conhecer, aprender, recordar, colocar os conhecimentos em prática e mesmo de ampliá-los e refletir sobre eles.

Isso pode envolver:

  • Compreensão de ideias complexas
  • Adaptar-se ao ambiente ou a novas situações
  • Aprender com experiências passadas
  • Usar diferentes tipos de raciocínio
  • Superar obstáculos e desafios
  • Resolver problemas com o uso da lógica
Tá, mas e o QI?

O QI é o resultado de um cálculo cujos valores base são os resultados de um teste de inteligência.

O termo QI foi sugerido em 1912 por Wilhelm Stern (1871-1938), dividindo a idade mental de uma criança pela idade cronológica.

Mais tarde, Lewis Terman (1877-1956) sugeriu multiplicar por 100 o resultado deste cálculo, evitando assim resultados decimais.

Assim, QI= idade mental/idade cronológica x 100. Ex.: uma criança de 7 anos, com idade mental também de 7 anos teria um QI=100: pontuação considerada média.

Teste de QI é só para crianças?

Não. Existem testes para todas as idades. Além disso, muitas vezes, o mesmo teste pode trazer atividades diferentes para faixas etárias diferentes. As tabelas de correção (que trazem as médias e desvio padrão) também são diferentes para cada faixa etária e nível de escolaridade.

O primeiro teste de QI para adultos foi desenvolvido em 1939, por David Wechsler (1896-1981). Como o cálculo de idade mental não faria sentido para adultos, Wechsler calculou os resultados de seu teste de forma que o resultado médio sempre fosse igual a 100.

Qual teste de QI se usa hoje em dia?

As Escalas Wechsler estão entre as mais confiáveis e utilizadas nos dias de hoje, tanto por sua precisão quanto pelas revisões constantes. Existem versões das Escalas Wechsler para diferentes faixas etárias, incluindo até mesmo uma versão abreviada.

Outro ponto favorável das Escalas Wechsler é o fato de trazerem diferentes subtestes (diferentes “tarefas” que formam o teste), numa avaliação bem completa e que traz resultados em forma de QI verbal, QI de execussão e QI total. Essa divisão é importante, em especial, quando nos deparamos com casos de pacientes com QI em valores muito acima ou muito abaixo da média, pois permite verificar quais habilidades se destacam para mais ou para menos.

Obviamente, existem outros testes de inteligência importantes e também utilizados, incluindo até mesmo testes não verbais.

Qual o QI normal?

Em qualquer grupo ou faixa etária, o QI médio sempre será 100, dentro de uma faixa (desvio padrão). Assim, uma pessoa com QI na faixa média t inteligência dentro do esperado para o seu grupo normativo (geralmente definido por idade e nível de escolaridade).

Vamos ver abaixo as faixas de classificação de QI, de acordo com as Escalas Wechsler:

  • 130 ou mais: Muito Superior
  • 120-129: Superior
  • 110-119: Média Superior
  • 90-109: Média
  • 80-89: Média Inferior
  • 70-79: Limítrofe
  • 69 ou menos: Muito Inferior

Lembrando sempre: o QI é apenas mais um dado na avaliação de um paciente e não deve ser utilizado para fechar diagnósticos ou prognósticos de forma isolada. É um dado que ganha importância ao se considerar o todo de uma avaliação (história clínica, história de vida, aspectos emocionais, dinâmica psicológica, funções neuropsicológicas…)

Para que se faz teste de QI na clínica?

Para muitos tipos de situação. Alguns exemplos são:

  • Avaliação neuropsicológica (incluindo casos diversos, como suspeita ou acompanhamento de Alzheimer e outras demências, autismo, TDAH, déficits em funções específicas, pós AVC, casos de tumores cerebrais, TCE…)
  • Dificuldades escolares
  • Suspeita de deficiência intelectual
  • Rastreio de altas habilidades
  • Orientação vocacional e planejamento de carreira
Inteligência e funções neuropsicológica

Explico sempre para os meus pacientes que o cérebro é como o maestro em uma sinfonia: ao ter que dar conta de uma tarefa, nenhuma função trabalha de forma isolada. Com a inteligência e a aprendizagem também é assim. Apenas uma ótima memória não é garantia de bom desempenho escolar, por exemplo. Estas são algumas das funções neuropsicológicas que se relacionam à inteligência e a capacidades como aprender e resolver problemas:

  • Atenção
  • Linguagem
  • Raciocínio matemático
  • Memória
  • Memória operacional
  • Capacidade visual e espacial
  • Planejamento
  • Inibição e controle de impulsos
  • Tomada de decisões
  • Pensamento abstrato
  • Lógica fuzzy (capacidade de lidar com algo e tomar decisões com base em informações incompletas, usando a lógica para deduzir dados faltantes)
  • Praxias (ações, gestos, coordenação dos movimentos)
Finalizando este artigo…

Vamos lembrar mais uma vez: aquilo que entendemos por inteligência pode variar conforme o contexto e, quando o conceito de inteligência muda, a maneira de avaliá-la muda também.

O QI é um dado muito importante numa avaliação neuropsicológica. Mas, isoladamente, este dado não basta para fechar diagnósticos ou estabelecer prognósticos. É preciso, sempre, considerar outros dados e o paciente como um todo.


Quer citar este texto no seu trabalho? Legal! Pode citar assim:

CARUNCHIO, Beatriz Ferrara. Testes de QI: como funciona a avaliação da inteligência; Inspirati Soluções em Saúde Mental, 2022. Disponível em: <https://inspiratisaudemental.com/2022/08/10/testes-de-qi-com…-da-inteligencia/> Acesso em 10 de agostoo de 2022.

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