Tudo Sobre: sintomas neuropsicológicos pós-covid-19

“Um dia você vai acordar e vai estar sol e um dia lindo e tudo já vai ter passado. E você vai respirar com alívio e sem máscara. Vai comer o seu prato favorito com a sua família e seus melhores amigos. E vão rir de alguma coisa sabendo que todo o pior passou e que você cumpriu muito bem a sua missão. A vida segue, doutora” – Lucas*, 13 anos (*nome fictício), que enviava mensagens de incentivo aos profissionais da saúde nas redes sociais. Fez toda a diferença, Lucas. Muito obrigada.

O tema escolhido pelo pessoal lá no Instagram para este Tudo Sobre foi Covid-19 e Covid longa/sequelas. Como este tema é rico e super extenso, combinamos que vamos focar aqui nos aspectos neurológicos/neuropsicológicos e de saúde mental.

Antes de começar, queria contar para vocês o quanto este assunto é especial para mim. Como profissional da saúde, atuei voluntariamente na pandemia, entre 2020 e 2021, em especial acolhendo os profissionais de linha de frente. Foi algo muito intenso e com certeza vou levar sempre comigo esta experiência e a memória dos pacientes, colegas e amigos que, infelizmente, não resistiram.

A doença é nova, mas sequelas neste tipo de quadro, não!

Sequelas neuropsicológicas de processos inflamatórios não são algo novo, muito menos apenas ligadas ao coronavírus. O saudoso neurologista Dr. Oliver Sacks (1933-2015) já descrevia sequelas semelhantes, descritas como “encefalite letárgica”, em pacientes que tiveram gripe espanhola.

Como o vírus atua no cérebro e sistema nervoso

É importante começar sabendo que o vírus não afeta apenas o sistema respiratório, mas o organismo como um todo. Pode viajar através dos nervos e atravessar a barreira hematoencefálica (uma barreira de proteção que temos ao redor do cérebro – é ela quem barra a maioria dos microorganismos e substâncias que podem ser tóxicas).

Além disso, o vírus é neurotóxico. Isso quer dizer que ele pode destruir neurônios e redes, o que dificulta as sinapses e a neuroplasticidade.

A doença afeta os astrócitos, que são células da glia que conectam os neurônios aos vasos sanguíneos, atuando em sua nutrição e dando suporte ao funcionamento neuronal. Os astrócitos são fundamentais para a consolidação das memórias, para as sinapses e para a neuroplasticidade. Quando afetados, os neurônios deixam de receber nutrição adequada, dificultando as sinapses e a formação de novas redes neurais. Com isso, surgem os sintomas, como dificuldades de memória e de atenção, de aprendizagem, névoa mental…

Também podem surgir autoanticorpos, ou seja, anticorpos que passam a atacar o próprio organismo, incluindo o sistema nervoso central.

É preciso controlar o estado de inflamação

As sequelas são associadas a um estado de inflamação que afeta o organismo de forma sistêmica. É preciso recordar que todas as condições associadas a processos inflamatórios trazem a possibilidade de gerar alterações neuropsicológicas.

Além de estarem associadas a sintomas cognitivos, as inflamações também podem trazer sintomas ansiosos e depressivos. Esses sintomas emocionais, por sua vez, também tendem a afetar a cognição. Essa cascata de efeitos inflamatórios é, atualmente, a hipótese melhor aceita para explicar esses quadros.

Durante o período de infecção

O paciente também está sujeito a eventos neurológicos, por exemplo:

  • AVC (risco de formação de coagulos)
  • Insônia
  • Sono em excesso
  • Alterações no ciclo de sono
  • Alterações em funções cognitivas
  • Delírium (ex.: acreditar que a equipe de saúde estaria tentanto fazer algum mal)
  • Confusão mental
  • Estado de coma
Os sintomas pós-covid sempre surgem imediatamente após a doença?

Não, nem sempre. Os sintomas pós-covid podem surgir até 1 ano após a doença.

Por isso, nem sempre os pacientes associam uma coisa à outra. Então é importante que nós, profissionais, sempre estejamos atentos a isso, investigando na anamnese e nas observações clínicas se o paciente teve Covid-19 e se apresenta alterações.

Da mesma forma, é importante que quem teve covid fique atento a própria saúde (física e mental) no decorrer do ano seguinte à doença, buscando ajuda profissional caso perceba algo diferente.

Quanto tempo duram os sintomas pós-covid?

Segundo a OMS, os sintomas duram pelo menos 2 meses, na maioria dos casos, 3 meses. Mas há casos em que se estima que poderiam se prolongar por anos.

Também é importante dizer que não se sabe sobre consequências de longo prazo da covid-19, ou seja, o que mais esses pacientes poderão vir a desenvolver daqui a alguns anos ou décadas.

Alguns sintomas neuropsicológicos comuns após Covid-19
  • Dificuldades na memória
  • Dificuldades de atenção
  • Dificuldades na linguagem (ex. não lembrar uma palavra, se perder no que estava falando, dificuldades para se expressar…)
  • “Brain fog”, algo como uma “névoa mental”, dificuldade para pensar e se manter atento
  • Distúrbios do sono
  • Aumento da ansiedade – 30 sinais e sintomas de ansiedade
  • Crises de pânico
  • Quadros psicóticos
  • Depressão
  • Pode haver risco de suicídio
  • Problemas nas funções executivas (ex. problemas de linguagem, perder prazos, dificuldades para tomar iniciativas e decisões, problemas com organização e rotina…)
  • Fadiga crônica
  • Fraqueza muscular
  • Tonturas
  • Redução da velocidade de processamento (paciente tende a demorar mais tempo para fazer algo que, antes, era mais ágil)
  • Perda do olfato e, em alguns casos, do paladar, ou disfunção desses sentidos (sentir os odores mais fracos, sentir apenas cheiros ruins, não sentir cheiros ruins, etc.)
  • Alterações nos movimentos e coordenação motora, inclusive da fala
  • Pacientes que tiveram delirium durante hospitalização podem apresentar TEPT
  • Pode antecipar/agravar demências nos pacientes idosos e/ou que já apresentavam sinais de quadro demencial
  • Atenção ao aumento do risco de quedas (devido a tontura ou alterações na força muscular)

Pacientes que tiveram a forma grave da doença, ou os que já tinham comorbidades cardiovasculares, neurológicas, cognitivas ou psicológicas tendem a apresentar maior probabilidade de sequelas neuropsicológicas. No entanto, cabe destacar que casos leves também podem deixar sequelas.

“Parece que estou melhorando, mas aí pioro outra vez”

Esta é uma queixa comum. A síndrome pós-covid-19 pode apresentar evolução flutuante, isto é, intercalar fases de melhora e de piora nos sintomas. É fundamental realizar reabilitação precoce e contínua, inclusive durante os períodos de melhora – aproveite estes períodos para avançar mais na reab, incrementando as funções neuropsicológicas e prevenindo pioras.

Recomendações gerais em casos de sequelas:
  • Diagnóstico adequado (avaliação neuropsicológica e exame clínico)
  • Controle de processos inflamatórios – além do tratamento médico, veja algumas dicas aqui sobre o eixo cérebro-intestino e como cuidar disso pode melhorar a saúde física e mental
  • Higiene do sono – aprenda aqui como fazer
  • Organizar a rotina
  • Estilo de vida saudável
  • Descanso, inclusive fazer pausas entre atividades ou até durante uma atividade mais pesada, especialmente se sentir falta de ar
  • Atividades de lazer para melhorar a reserva cognitiva – entenda isso neste link
  • Reab com estimulação das funções afetadas. Isso pode incluir tarefas cognitivas, jogos, treino de paladar e olfato, etc. É importante começar a reabilitação o mais cedo possível.

Lembrando que estas são recomendações gerais. Cada caso é único e precisa ser avaliado com cuidado por um profissional, assim será possível planejar o tratamento e reabilitação de acordo com as necessidades do paciente. Num cenário ideal, o melhor seria se todos os pacientes de covid passassem por avaliação neuropsicológica após a infecção, reavaliação após 3 meses, 6 meses e 1 ano – conheça nossos serviços de avaliação neuropsicológica clicando aqui

Sobre o olfato e o paladar

Queixas sobre alterações no paladar e olfato, e mesmo sobre a perda destes sentidos, infelizmente são comuns. Em grande parte dos casos, paladar e olfato se recuperam em poucas semanas.

Paladar e olfato são muito interligados, neurologicamente falando. Sabores mais simples podem ser diferenciados sem ajuda do olfato – como amargo, doce, azedo, salgado… Mas a maioria dos sabores são complexos e precisam do olfato. É ele que ajuda a perceber se aquele sabor docinho é banana ou melancia, por exemplo.

Como ter certeza se perdeu ou não o paladar? Se você comer algo e sentir sabores básicos, mas não tiver certeza de qual alimento é, então perdeu apenas o olfato. Caso nem mesmo chegue a perceber se é doce ou salgado, por exemplo, perdeu o paladar também.

Essas alterações não estão necessariamente relacionadas a problemas respiratórios ou comprometimento pulmonar. Eles ocorrem por lesão ou disfunção do nervo olfatório ou do bulbo olfatório, região responsável pelo olfato. Caso ocorra a destruição do bulbo olfatório, a tendência é que as alterações sejam irreversíveis.

Apesar de muitas pessoas se referirem a essas perdas como algo simples, algo menor, é notável que não são. Todos os sentidos da nossa percepção são importantes, afinal, são eles que formam o nosso contato com a realidade, com o mundo exterior a nós mesmos.

Alguns perigos dessas perdas podem incluir a ingestão de alimentos impróprios para o consumo, e até mesmo acidentes com vazamento de gás em casa. Também existem casos de pacientes que, por não sentir sabor, deixam de se alimentar como deveriam, levando a carência de nutrientes e todas as consequências que isso traz para a saúde.

Indo além, paladar e olfato são fundamentais para nossa afetividade. Não nos alimentamos apenas para nutrir o corpo. A alimentação carrega uma série de outras questões sociais e culturais (aquela pizza com os amigos, por exemplo) e mesmo emocionais (a comidinha da mãe ou da avó, aquele prato que traz conforto e sensação de pertencimento). O olfato também está profundamente atrelado aos relacionamentos. Um paciente que perde o olfato deixa de sentir odores que são afetivos para si, que trazem boas recordações (o cheiro de terra molhada, do mar…) e o odor do parceiro ou dos filhos pequenos – apesar de nem sempre se considerar, são pontos que fazem muita diferença na criação de laços.

O que fazer se isso aconteceu com você? Comece o quanto antes a estimular esses sentidos. Ao se alimentar, mastigue devagar e espalhe bem o alimento pela superfície da lingua. Além disso, todos os dias profure sentir e diferenciar muitos cheiros – pode usar o que tem em casa, como limão, pó de café, temperos como a canela… Se utilizar odores que tenham memórias afetivas envolvidas, melhor ainda.

Geralmente, com esse treino, melhoras são percebidas em pouco tempo. Mas caso não perceba melhoras, não deixe de procurar tratamento. Existem tratamentos com laser para casos assim, são seguros e já são utilizados há bastante tempo com pacientes que perdem o olfato/paladar por outros motivos (pacientes em quimioterapia, por exemplo).

Considerações sobre memória, atenção e processos cognitivos

Como vimos, o cérebro e o sistema nervoso podem ser profundamente afetados pela covid-19. Juntam-se ao vírus, outros fatores como as consequências do isolamento, o estado de inflamação e mesmo as alterações emocionais.

O aumento do nível de cortisol dificulta processos cognitivos como a atenção e, por consequência, a formação de novas memórias. Quando esse aumento é algo prolongado ou muito intenso, podem ocorrer alterações na arquitetura cerebral. Por isso, um ponto determinante para cuidar da memória, da atenção e de processos cognitivos é cuidar do estresse: estilo de vida saudável, higiene do sono, pausas constantes para descanso, alimentação equilibrada, atividade física…

Além disso, é importante também cuidar dessas funções. Isso pode ser feito com atividades como jogos de memória, atividades de completar palavras/símbolos/números, palavras cruzadas, leitura, atividades motoras…

Como dissemos, o ideal seria que todo paciente de covid passasse por avaliação neuropsicológica, reabilitação feita por um profissional e reavaliações periódicas para acompanhamento da evolução do caso, especialmente nos casos em que há sequelas na atenção, memória, linguagem e outras funções neuropsicológicas.

Cuidando de quem cuida: saúde dos profissionais

Foi uma guerra, né? Vimos pessoas e famílias passando por coisas que nenhum ser humano no mundo deveria passar. Ouvimos coisas que ninguém deveria ter que carregar entre na memória.

Algumas considerações sobre a saúde mental de profissionais da saúde em contexto de pandemia e pós-pandemia:

  • Níveis altos de ansiedade e estresse merecem atenção
  • Aumento do risco de desenvolvimento de Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) entre profissionais
  • Crises de pânico
  • Angústia constante: posso estar infectado sem saber e transmitir o vírus para meus familiares ou pessoas com quem convivo?
  • Consequências do nível de estresse elevado: alterações no sono e no apetite, dificuldades de concentração e memória, isolamento, alterações de humor, entre outras)

É importante estar bem para cuidar de outra pessoa. As principais orientações aos colegas são no sentido de cuidar do estresse, por exemplo, com higiene do sono, atividade física e alimentação equilibrada. Organizar as lembranças dessa fase difícil podem fazer uma diferença imensa. Você pode fazer isso anotando-as ou gravando enquanto fala. Psicoterapia também deve ser considerada, em especial nos casos de TEPT e crises de pânico.

Entre colegas: como cuidar desses pacientes?

É profissional da saúde? Vamos conversar um pouco sobre como cuidar desses pacientes:

  • Fique atento aos seus pacientes, é muito importante perguntar se tiveram Covid-19 e se apresentam esses sintomas. Nem sempre o paciente associa o sintoma à causa, por isso, cuidado em dobro! Por aqui adotamos a prática de incluir este item na anamnese, investigando como foram os sintomas e o tratamento, se houve sequelas e como está no momento
  • Avaliação neuropsicológica para avaliar quais funções neuropsicológicas apresentam déficit, e reavaliações periódicas para acompanhar a evolução
  • Reabilitação neuropsicológica de funções em déficit deve ser contínua e iniciar o mais cedo possível
  • Controle de processos inflamatórios
  • Regular ciclo sono-vigília, orientando seu paciente sobre higiene do sono e a importância de dormir bem para a saúde e a recuperação
  • Pode haver dificuldade para metabolizar serotonina, tornando o paciente vulnerável a transtornos de humor
  • Atenção ao risco de suicídio. Pacientes que apresentem processos depressivos, ansiosos ou quadros psicóticos precisam ser monitorados com todo o cuidado quanto a isso
  • Repouso. Oriente sobre pausas e permita pequenas pausas durante as atividades de reab, de preferência antes do paciente manifestar sinais de cansaço
  • Em caso de falta de ar, fadiga ou fraqueza muscular, oriente o seu paciente a fazer tarefas do dia a dia sentado, sempre que possível (inclusive o banho – risco de queda!)
  • Monitorar saturação de oxigênio. Caso caia para 92%, fazer pausa na reab ou na atividade, para evitar sobrecarga cardíaca

A perspectiva é que, ao longo das próximas décadas, ainda sejam comuns na clínica queixas e sequelas relacionadas ao covid. Por isso, precisamos estar preparados para o acolhimento e cuidado destes pacientes e de suas famílias.

Para terminar: prevenção e vacinas salvam vidas!

Todo mundo já disse isso, mas como a questão surgiu na caixinha do Instagram, viemos reforçar: vacinas são seguras! Tivemos uma pequena polêmica sobre esse assunto lá na caixinha e resolvi aproveitar este Tudo Sobre para alertar sobre o perigo das fakenews em saúde.

Espalhar notícias falsas sempre é algo terrível. Mas quando são notícias falsas sobre saúde, elas são ainda mais cruéis: podem matar e destruir famílias.

Não é questão de brincadeira de mal gosto, nem de opinião ou ponto de vista. E para piorar, muitas vezes essas mentiras vêm disfarçadas com um falso discurso científico. Resultado: em pleno 2022 temos pessoas com medo de vacina, igualzinho acontecia no comecinho do século passado!

Vacinas são seguras. São tecnologias dominadas há bastante tempo, com eficácia comprovada contra tantas doenças. Doenças foram erradicadas graças a vacinação.

“Ah, mas eu tomei e tive reação.” Lembre-se que qualquer vacina pode causar reações – e isso é apenas o sistema imunológico reagindo, aprendendo a combater a doença.

“Mas Fulano tomou e ficou doente mesmo assim.” Nem todo mundo sabe disso, mas nenhuma vacina é tem 100% de eficácia. Mesmo assim, elas reduzem drasticamente as chances de ficar doente, de ter formas graves da doença, complicações e, principalmente, reduzem as chances de morte.

Tome as vacinas conforme forem oferecidas para sua faixa etária e/ou condição de saúde. Siga higienizando as mãos e usando máscaras. A vida é preciosa.

Fake news em saúde matam. Destroem vidas, famílias, sonhos… Questione o que ouvir por aí, mesmo que pareça científico. Mesmo que quem tiver contado tenha sido alguém querido, com boa intenção. Confie nos profissionais da saúde, que dedicam suas vidas ao estudo sério destes temas e ao cuidado dos pacientes, não em “aventureiros” com intenções duvidosas por trás de discursos sensacionalistas.


Quer citar este texto no seu trabalho? Legal! Pode citar assim:

CARUNCHIO, Beatriz Ferrara. Tudo Sobre: sintomas neuropsicológicos pós-covid-19; Inspirati Soluções em Saúde Mental, 2022. Disponível em: <https://inspiratisaudemental.com/2022/07/04/tudo-sobre-sintomas-neuropsicologicos-pos-covid19/> Acesso em 30 de agosto de 2022.

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